terça-feira, 27 de fevereiro de 2007

66 - O cerco

Os goístas iniciantes, em geral, ficam em dúvida sobre o objetivo básico do jogo de Go. Leio com certa freqüência, na lista Go Brasil e no Orkut, diversos questionamentos sobre o tema. E algumas comparações com o jogo de Xadrez. No meu entendimento de goísta capivara (iniciante e de pouco conhecimento técnico), eu percebo que “alguém ouviu cantar o galo, mas não onde”. Fascinados com o canto das sereias – as poucas regras e a plasticidade das estruturas construídas sobre o tabuleiro – os goístas iniciantes não ouvem a sinfonia dos conceitos e das metáforas goísticas. Por que isso ocorre?

O goísta precisa ter visão clara dos objetivos estratégicos e táticos da Arte de Go, sem a qual o desenvolvimento técnico fica comprometido. E não é fácil obter essa compreensão. Os conceitos da Arte são simples, mas a simplicidade ilude aqueles que ficam presos na dimensão lúdica de Go – sua expressão como jogo.

As comparações entre Xadrez e Go são relativas. São jogos de objetivos, estratégias e táticas diferentes. As comparações indicam pontos de semelhança. Assinalam as diferenças. E só. Não é possível comparar Go e Xadrez de forma linear.

Existe uma grande diferença entre Go e Xadrez. Basta comparar o objetivo básico de cada jogo:

“Os jogos apresentam diferentes objetivos. Como sabido, o Go é uma luta por domínio territorial (e eventualmente a captura de peças – as pedras). Onde a busca pelo cerco (tomada de território) fica bem caracterizada durante todo o desenvolvimento da partida. O Xadrez é um jogo de tomada de poder (representada pelo xeque-mate ao rei). Uma partida será perdida (mesmo com grande domínio territorial) se o rei for atacado e não puder ser defendido.”
(Vide Go x Xadrez, artigo publicado no site GOBR - contexto: Reflexões).

Mas o que pode passa desapercebido ao iniciante é que a luta por território, elemento estratégico fundamental na Arte de Go, é uma representação simbólica da luta pela sobrevivência.

“O homem para sobreviver num ambiente hostil e adverso vive em grupo. E interagindo com o seu semelhante (em dor e perplexidade) constrói a vida em sociedade. Desde os primórdios da humanidade, o homem praticou a caça e a guerra. A primeira como uma necessidade imediata e premente. A segunda em decorrência das necessidades coletivas de sobrevivência do grupo. A atividade da caça encontra sua justificativa na necessidade alimentar (a caça hoje é fortemente combatida pelos movimentos ecológicos e os ambientalistas, não cabe entrar aqui no mérito da questão). E a guerra como pode ser justificada? Muitas são as explicações para o fenômeno da ocorrência da guerra nas sociedades humanas, nenhuma conclusiva.
O homem primitivo (usando armas de curto alcance) precisava cercar a presa, o animal ou o homem/grupo inimigo, para conseguir sua alimentação ou vencer seus adversários humanos. Mas como fazer? Quando? Onde? Quais os pontos fracos da presa e hábitos? Como atacar? Como defender em caso de reação? E o homem começou a planejar suas ações, pois percebeu que para obter a caça ou a vitória numa guerra era preciso usar bem os recursos (limitados) e agir de forma planejada para minimizar a possibilidade de fracasso.
Agir por agir é perigoso e em geral improdutivo. Um animal ou homem acuado age com todo o seu potencial defensivo e destrutivo, colocando em risco o agente perseguidor – pois existe uma luta de vida e morte, o instinto de preservação dominará as ações da espécie ameaçada. Ensina Chia Lin (A Arte da Guerra, de Sun Tzu): “Um exército, embora possa ser atacado, não deve ser atacado se estiver em circunstâncias desesperadoras e se houver a possibilidade de o inimigo lutar até a morte.”.
Agir por agir resulta em desperdício de recursos e a coordenação das forças fica comprometida. Uma ação não planejada (ou planejada de forma errada ou inadequada) poderá fazer com que os agentes atacantes sejam surpreendidos pela falta de recursos no momento em que eles mais precisem. A vantagem numérica dos agentes atacantes (de caçadores, de soldados - ou armas – no caso de Go, de pedras) não garante o sucesso se as forças que possuem a iniciativa (Sente) estão desorganizadas e sem coordenação.
Então o homem primitivo começou a usar a estratégia de forma sistemática, ou seja, a planejar suas ações sempre que participava de uma caçada ou de uma guerra. E diversos foram os instrumentos para modelar seu território de caça ou de guerra. Ele usou as paredes das cavernas, o desenho na areia, o registro em couro curtido, o pergaminho, o papel etc.”

(Vide Estratégia, artigo publicado no site GOBR - contexto: Reflexões).

Cercar é a ação tática que potencializa a conquista de território. O quê cercar? Como? Qual o momento eficaz e efetivo do cerco? Qual a amplitude? Quais os recursos necessários? É possível impedir a ação tática? Como criar a ilusão do cerco? Quais as conseqüências (local e global)? Todas questões estratégicas importantes e fundamentais para a correta solução dos problemas que surgem no decorrer de uma partida de Go.

A idéia de cerco pode ser encontrada em toda atividade humana. Isso a dimensão filosófica de Go ensina ao goísta. Alguns exemplos:

a) Um tipo de programa na TV brasileira (e em outros países), atualmente de grande audiência, é formado com base no instinto voyeur dos animais e no cerco. Um grupo de animais previamente selecionados é colocado numa região cercada e preparada para oferecer facilidades e conforto. E outro grupo de animais fica observando o comportamento dos animais cercados. A humanidade e a animalidade dos animais cercados.

b) A Esplanada dos Ministérios, em Brasília, possui um interessante cerco geo-político. Uma região nobre da cidade cercada por diversas organizações – Congresso Nacional, Supremo Tribunal Federal, Palácio do Planalto, Catedral de Brasília e Ministérios.

c) Ontem, dia 27/2/07, um programa de TV (jornal televisivo) apresentou matéria sobre o cerco de violência da Capital Federal. Coisa rara de ser mostrada na televisão brasileira. Em geral, os brasileiros pensam que os brasilienses moram num eldorado sem violência, miséria, drogas, prostituição, banditismo, engarrafamento de trânsito, analfabetismo, poluição, etc. Brasília e região do entorno é cercada por favelas, traficantes e regiões de acesso perigoso. Sim... a polícia ainda consegue entrar nestas regiões dominadas pelos traficantes e bandidos... Mas só entra fortemente armada...

d) O Parque da Cidade é uma área de Brasília destinada ao lazer e recreação de uns poucos moradores. Digo poucos porque a maioria da população não pode visitar o local com freqüência. O transporte coletivo é caro e de baixa qualidade. A passagem de ônibus custa apenas a bagatela de R$ 3,00 (Três Reais). Suponha uma família de cinco pessoas (pais e filhos). Indo ao Parque da Cidade, a família gastará no mínimo R$ 30,00 (Trinta Reais) - só de passagem. E, mesmo levando de casa, quanto custa “os comes e bebes”? E como uma boa parte da população da cidade ganha muito pouco... Pois bem, as autoridades da cidade estudam a possibilidade de fechar (a área possui portões de acesso) o Parque da Cidade depois das 24:00 h. Ou seja, cercando a região esperam combater a prostituição, o consumo de drogas e os assaltos. Algumas partes do Parque da Cidade, principalmente à noite, são terra-de-ninguém. Onde as prostitutas e prostitutos fazem ponto. É grande o comércio e o consumo de drogas. E os assaltos freqüentes.

e) Os famosos, os Vips, coitadinhos... não podem freqüentar locais públicos. Rapidamente são cercados pelos fãs. Autógrafos, beijos e abraços. Tumulto e confusão. É o preço da popularidade. E uma ameaça à integridade física das “celebridades”.

f) Patrulhamento político e ideológico. Forma agressiva de repressão intelectual. O grupo dominante tenta impedir a livre expressão perseguindo, de forma ostensiva ou não, as vozes discordantes. Fazem um verdadeiro cerco contra as novas idéias, aos grupos minoritários, as propostas políticas da oposição, etc.

h) Outra forma interessante de cerco é praticada por algumas seitas religiosas fundamentalistas. Usam e abusam de sofisticados recursos tecnológicos para venderem, aos incautos e ingênuos, o “ouro dos tolos”. Protegidas por dispositivos constitucionais criados para a proteção do cidadão, contra a opressão política e religiosa, elas cercam os fiéis com todo tipo de promessas e engodos. Na tentativa de dificultarem a manifestação do livre-arbítrio, um cerco ao livre pensamento, desestimulam os fiéis a lerem literatura científica ou doutrinariamente discordante. Proíbem o contato com fiéis de outros movimentos religiosos. Exigem fé absoluta e inquestionável em seus pregadores. E o pior, verdadeiro atentado aos direitos e garantias constitucionais, elas atacam violentamente outros credos religiosos. Ridicularizando rituais e práticas. Fazem um cerco ideológico-doutrinário, isolando o fiel (da seita fundamentalista) do salutar intercâmbio cultural e filosófico.

i) As guerras estão repletas de exemplos, diretos e indiretos, da importância do cerco. Batalhas foram ganhas ou perdidas pelo uso adequado ou indevido do cerco. Desde a Antiguidade, as grandes cidades da Europa e da Ásia foram cercadas. Nos tempos modernos, a Rússia adotou a tática da “terra arrasada” para enfrentar a França. Enquanto Napoleão invadia o território russo, as tropas russas evitavam o combate e destruíam tudo que pudesse suprir de mantimentos as tropas napoleônicas. Não podendo combater as tropas de Napoleão, os militares russos construíram um cerco de fome e frio. Na 2ª Guerra Mundial as tropas alemãs receberam um tratamento semelhante. Os Nazistas cercaram os Judeus, que foram confinados em guetos. A Alemanha foi divida. E construído o famoso e demolido “muro da vergonha” – verdadeiro cerco sócio-político.

j) O maior cerco (como construção) sem dúvida alguma são as Muralhas da China. Única construção da humanidade que pode ser vista da Lua sem ajuda de binóculos ou telescópios.


E outros mil exemplos poderiam ser citados sobre cerco (ação ou objeto).

Mas... e no Xadrez, o cerco não é importante? Sim. Muito importante. Mas a amplitude e a relação com os fatores estratégicos e táticos é diferente. Em Go a ação de cercar é um fator estratégico, pois está diretamente ligada ao objetivo do jogo. No Xadrez, o cerco é um componente tático. A ação de cercar não está vinculada diretamente ao objetivo do jogo de Xadrez embora possa influenciar a estratégia.
É claro que podemos observar a idéia de cerco no Xadrez. Ao realizar o roque, o Rei fica cercado por seus peões. Muro defensivo e de grande importância para a defesa do Rei. O pequeno roque é mais seguro do que o grande roque. Quando os Reis realizam o roque em lados opostos... ocorre uma grande definição estratégica. A cadeia de peões, verdadeiro cerco de área, possui um duplo aspecto: ofensivo e defensivo. E o ponto de ruptura da cadeia pode significar a diferença entre a vitória e a derrota. Ter uma cadeia de peões dominando uma grande área de tabuleiro – sem dúvida alguma favorecendo a coordenação e a mobilidade das peças – pode ser importante componente ofensivo ou defensivo... mas se o Rei estiver exposto ao xeque-mate... de nada vai adiantar ter conseguido um grande território. O objetivo do jogo de Xadrez não é fazer território.
Uma peça pesada (ou leve) pode ser cercada e capturada. O jogador pode cercar e capturar diversas peças do adversário resultando em vantagem material que pode ser transformada em vitória. Mas se o Rei estiver exposto ao xeque-mate... as ações de cerco e captura foram inúteis... de pouco valor é cercar e capturar peças, se o adversário pode executar, com um peão, o doloroso e destrutivo xeque-mate. E também não adianta levantar um grande “cercado”. Uma barreira defensiva de peões e peças, se o adversário... com um simples cavalo pode aplicar o xeque-mate abafado.