Artigo publicado no site GOBR
Capivara, jogada capivaral, capivarada, inspiração capivaresca. Quando visito o KGS (Kiseido Go Server) para jogar ou conversar, de vez em quanto utilizo essas palavras e correlatas. Muitos goístas ficam em dúvida sobre o significado dos termos. O que significa capivara Magista? É a pergunta comum dos novos amigos, que ainda não conhecem o meu jeito de falar... meio enxadrísta, meio goísta.
O termo vem do xadrez. Capivara é o jogador iniciante, que possui pouco conhecimento teórico e prático. É utilizado não de forma pejorativa, mas indicando uma condição que embora transitória cria situações hilárias, interessantes e paradoxais. E por extensão é utilizada para identificar fatos, situações e lances realizados durante a partida que lembram a condição do novato, do inexperiente das primeiras horas...
Existem vários tipos de capivaras. E aqui não apresento todas as modalidades, mas apenas as principais características do jogador capivaral. Existe todo tipo de “bicho”. Uns sabem que são capivaras e procuram sair desta condição com estudo e muita prática. Outros vivem enganados pela vaidade e o orgulho - progridem pouco, pois não sabem que não sabem ou a ilusão do intelecto embota o julgamento de sua condição. Mas é bom lembrar aos interessados - aos goístas esforçados e conscientes de suas limitações -, que a condição capivaresca é feito praga de espelho (quebrou um... azar por sete anos...) pode durar muito tempo...
O leitor está curioso sobre o capivara? Deseja conhecer as suas características? Conhecer seu mundo existencial? Descobrir suas motivações e segredos? Perceber a complexidade de suas emoções? Então vamos conhecer este “bicho” surpreendente e enigmático...
O capivara vive a perder partidas ganhas. Quando a posição exige lance simples e objetivo, complica jogando um movimento especulativo. Se a partida está perdida, com grande diferença de material ou clara vantagem estratégica, ele insiste em continuar e adota uma postura de quem já ganhou. Não... não deseja aprender... ele insiste porque está convencido que ainda pode ganhar.
Assistindo as partidas informais - numa partida de torneio, o capivara seria convidado a sair... -, não se contém... e dá sua opinião sobre o melhor lance, que costuma ser perdedor...
É um “comedor de peças” (no xadrez é dito: comedor de peões), pois ainda não compreende ou conhece: a importância da influência; do tempo; o valor relativo das peças; as jogadas marotas; o sacrifício de material; a hierarquia das jogadas; as características das linhas e das diversas áreas do tabuleiro; as fases do jogo; os grandes temas estratégicos e táticos; a necessidade da análise sistemática das variantes ou da posição global. Daí o baixo nível técnico... ou melhor, a “gula”. Toma todas as peças possíveis sem perceber que o “Cavalo de Tróia”... possui vários sabores e formas...
Não fica constrangido ao voltar uma jogada e com freqüência fala para o adversário (quando é educado) posso voltar o lance? Violando as regras de etiqueta (no xadrez existe a regra áurea: peça tocada, peça jogada). Não percebe que agindo assim dificulta o próprio aprendizado. Alguns chegam, também, a colocar os dedos sobre o tabuleiro. Numa tentativa vã de clarear o raciocínio e descobrir as intenções do adversário.
O capivara é fã de carteirinha das formações exóticas e pouco sólidas. Conhece todas ou pelo menos pensa que conhece. E fica perplexo com a teimosia dos jogadores fortes, que não utilizam as formações heterodoxas.
Possui uma relação de amor ou ódio com a entrega de material, a barganha entre o valor material e o valor estratégico. Foge do sacrifício como o diabo da cruz ou morre de paixão pela entrega inconseqüente de material. Não existe meio-termo para o capivara.
Uma tara comum encontrada no mundo capivaresco: o culto as armadilhas e as jogadas espetaculares e mirabolantes. Para o capivara vencer buscando de forma objetiva, técnica e sistemática é coisa vulgar. Ele passa horas e horas decorando armadilhas e “fórmulas” ganhadoras.
O capivara sabe-tudo não analisa as partidas jogadas, pois “sabe” onde errou ou acha que não é importante rever as partidas disputadas. E se um jogador mais experiente indica seus erros, ele tem “justificativa” técnica na ponta da língua. O capivara não erra, ele se engana. Quando isso ocorre é por culpa do adversário... O “sabido” joga esperando que o adversário erre. A análise da posição tende a ser superficial devido ao pouco conhecimento técnico e a inexperiência. E o desejo de que o adversário não descubra as intenções de sua “jogada brilhante” turva a análise.
Jogar, jogar, jogar... de forma compulsiva, rapidamente, sem refletir sobre a qualidade dos lances realizados, sem analisar a conseqüência das jogadas, sem perceber o fluir da partida, sem delinear um plano estratégico ou de ação. Eis outra característica do capivara. Perdido na vastidão do desejo de se transformar num jogador experiente e forte, não encontra o caminho da reflexão e da sabedoria.
Confunde ações de ataque e de defesa. Muitas vezes pensa que ataca quando na verdade é atacado, pois não possui sólida formação teórica e experiência para analisar com segurança certas posições da partida. A visão sobre o jogo é ainda muito limitada. Joga apenas para fazer território. O binário poder x território é uma incógnita. A harmonia estética da boa forma... uma miragem...
Oh! Como é grande o centro! Com ele vou ganhar o jogo! Que tolo meu adversário... jogando pelos cantos e nas laterais! E assim o capivara flutua no Céu, nas áreas altas do tabuleiro, na esperança de fazer grandes e indestrutíveis territórios.
Vencer o medo de perder é o grande desafio a ser superado pelo capivara e até por muitos jogadores experientes. Quem não gosta de ganhar uma partida? A vida em sociedade incentiva o comportamento competitivo. Introjeta no indivíduo os falsos valores do sucesso e da derrota (em função do status social e da situação financeira). O medo da derrota esmaga a auto-estima do capivara, que tende a transferir para o jogo a exigência da vitória, o sonho do sucesso (vencer ou vencer) tão incentivado na vida social. O capivara evitando ou temendo jogar contra goístas mais fortes e experientes, ainda não percebeu que o mais importante da partida não é o resultado – vitória, derrota ou empate. É o processo de construção da partida. A vitória e a derrota são efêmeras e grandes ilusões. Quem nunca descobriu que ao vencer perdeu... ao perder ganhou? Assim também é na vida... não é mesmo?
Os capivaras de todos os tipos, de todos os quadrantes, de todos os jogos, de todos as atividades se assemelham e possuem afinidades. Onde existir atividade humana, aí encontramos o capivara e a capivarada. O erro não decorre da inexperiência, do momento leviano, do juízo apressado, do desejo, da mesquinhez de sentimentos, da soberba, do autoritarismo, da tola vaidade, da ilusão da permanência, da astúcia, do ódio, da inveja, da mentira? Errar não faz parte da condição humana?
Ninguém escapa de uma capivarada. O lance infeliz que compromete a partida. Ou de um dia de pouca inspiração, quando capivaramos do começo ao fim numa partida (ou em várias partidas). Não importa a força do goísta... O lance desastroso será realizado... o dia capivaral chegará... mais cedo ou mais tarde!
O que fazer nos momentos capivares? Só resta ter paciência e sorrir. Aprender com o momento de sofrimento mental e espiritual. E recordar a bela poesia de Nelson Motta e Lulu Santos (Como uma onda):
Nada do que foi será
De novo do jeito que já foi um dia
Tudo passa
Tudo sempre passará
A vida vem em ondas
Como um mar
Num indo e vindo infinito
Tudo que se vê não é
Igual ao que a gente viu a um segundo
Tudo muda o tempo todo
No mundo
Não adianta fugir
Nem mentir pra si mesmo agora
Há tanta vida lá fora
Aqui dentro sempre
Como uma onda no mar